Kyudo
- Gabriel Garcia Borges Cardoso
- 19 de jul.
- 5 min de leitura
Kyudo é o termo japonês para a prática de arco e flecha, que pode ser traduzido como "caminho do arco" (弓道). Assim como já vimos, o ideograma "Do" possui um significado muito profundo, por isso, recomendamos a leitura do texto sobre Judô, para melhor compreensão desse conceito.
Os primeiros registros dessa atividade no Japão datam do século VII e são conhecidos como Kyujutsu (técnicas do arco), focados no uso do arco e flecha para combate e guerra.

Com o tempo, e a redução gradual da cultura de guerra no Japão, além das influências confucionistas, budistas e xintoístas, o Kyujutsu passou a incorporar um espírito filosófico das artes marciais. Assim, apesar da longa história do arco e flecha no Japão, foi apenas no século XX que o termo Kyudo se popularizou e se tornou amplamente respeitado.
Kyudo refere-se à prática marcial tradicional e filosófica do arco e flecha como meio de aperfeiçoamento pessoal, dentro dos aspectos Zen-Budistas. Pode-se compará-lo a outras artes japonesas como Chado (Cerimônia do Chá), Kado (Ikebana) e Shodo (Caligrafia).
A essência do Kyudo não está em acertar o alvo ou disparar a flecha mais longe possível, mas sim em harmonizar mente, corpo e espírito. É uma arte marcial profundamente ligada à meditação, com objetivos de alcançar a Verdade (Shin), o Bem (Zen) e a Beleza (Bi). Esta busca pela Beleza (Bi) reflete-se inclusive na forma única e venerada do arco tradicional e na postura do praticante, que evoluiu para se adaptar às exigências do instrumento, criando uma relação de harmonia formal.
Equipamentos do Kyudo
Os materiais utilizados no Kyudo são mais do que ferramentas; são extensões do praticante e elementos centrais na busca pela perfeição técnica e espiritual. Os principais equipamentos incluem:

Yumi (弓 - Arco): Um arco longo (mais de 2,20m) e assimétrico, cuja forma única se fixou entre os séculos XIV e XV. Tradicionalmente feito de bambu laminado colado (conferindo resistência e flexibilidade), é hoje também fabricado em fibra de vidro ou carbono para iniciação. Sua beleza singular é objeto de veneração, e a técnica do Kyudo evoluiu para se adaptar às suas exigências, buscando harmonia entre arqueiro e instrumento.
Ya (矢 - Flecha): Flechas relativamente longas (90-105 cm) devido à abertura do arco. Tradicionalmente de bambu (Yadake) com ponteiras de aço, penas naturais e nock de chifre, hoje utilizam-se materiais como alumínio, carbono, penas de aves comuns (ex: peru) e nocks de plástico/resina por razões de sustentabilidade. Seu comprimento (yashaku) é personalizado conforme o yazuka (abertura única do arqueiro), medido do centro da garganta à ponta dos dedos estendidos, acrescido de 5-10 cm.
Yugake (弽 - Luva): Luva essencial de couro (pele de veado) para a mão direita, com proteção rígida no polegar (Tsurumakura). Usada sobre uma luva interior de algodão branco (shitagake). Os tipos principais (Mitsugake - 3 dedos, Yotsugake - 4 dedos, Morogake - 5 dedos) implicam pequenas variações técnicas sem alterar os fundamentos. O Giriko (resina de pinheiro) é aplicado para regular o atrito na luva.
Mato (的 - Alvo) e Makiwara (巻藁 - Alvo de Treino):
O tiro padrão (Kinteki) é feito a 28m num alvo circular de 36cm de diâmetro (madeira revestida de papel), colocado 9cm acima do solo num espaldão de terra inclinado (Azuchi). Tiros a distâncias maiores (Enteki - 60m) usam alvos maiores/não-circulares e técnicas distintas.
O Makiwara é um rolo cilíndrico de palha (~60cm diâmetro) fundamental para treino técnico a curta distância (1-2m), utilizado por praticantes de todos os níveis. Historicamente colocado na vertical para simular um tronco.
Acessórios: Incluem o Tsurumaki (porta-corda sobressalente tradicionalmente de vime) e o Giriko ire (recipiente para a resina Giriko).
Vestuário Tradicional: O Kyudogi (弓道着)
O uniforme do kyudoca é tradicional e formal, refletindo o cerimonial da arte. Consta de:
Kyudogi (弓道衣): Camisa de treino, normalmente em algodão branco. Para ocasiões formais, usa-se um Kimono.
Hakama (袴): Saia-calção tradicional. No treino regular, é preta ou azul-escuro. Com kimono, pode ter outras cores e padrões.
Obi (帯): Cinto usado sob o Hakama. Diferente de outras artes marciais, não indica graduação por cores.
Tabi (足袋): "Sapato-meia" branco com dedo separado, para uso com chinelos (setta ou zōri).
Muneate: Protetor de busto usado por mulheres.
Existem diferenças sutis entre os uniformes masculinos e femininos, tanto no corte quanto na maneira de vestir e amarrar o obi e o hakama.
Os materiais básicos listados são essenciais para iniciantes. Contudo, conforme o kyudoca evolui, diversos acessórios tornam-se necessários (porta-cordas, porta-flechas, kit de manutenção), e há uma troca natural de arcos mais leves por modelos mais pesados e tradicionais (de bambu), exigindo novos cuidados e adaptações técnicas. Esta jornada de aprofundamento reflete o próprio "Caminho" (道 - Do) do Kyudo.
Os Oito Passos do Tiro (Shaho-Hassetsu)

Segundo a Federação Portuguesa de Kyudo, o Shaho-Hassetsu, ou os "Oito Passos do Tiro", representa não apenas uma técnica de disparo, mas uma abordagem holística para alcançar precisão, concentração e harmonia com o arco, flecha e o próprio praticante.
Resultado de uma desconstrução e simplificação do processo formal do tiro, o conceito do Shaho-Hassetsu é uma síntese de séculos de conhecimento acumulado sobre o manuseamento do arco e flecha, resultante da observação cuidadosa e da prática dos mestres arqueiros ao longo do tempo. Através da divisão do processo de tiro em oito movimentos fundamentais, o Hassetsu proporciona uma estrutura para a aprendizagem progressiva e aperfeiçoamento contínuo.
Assim como uma correnteza de rio que flui de forma contínua e natural, os movimentos do Hassetsu devem ser realizados sem interrupções, fluindo em harmonia com a respiração do praticante.
Qual a diferença entre Kyudo e Tiro com Arco comum?
À primeira vista, as duas práticas parecem iguais: ambas usam arco e flecha para acertar um alvo. Mas os objetivos e o espírito por trás delas são totalmente diferentes.
No Tiro com Arco comum (estilo ocidental):
O foco principal é acertar o alvo e marcar pontos. É um esporte competitivo, como handebol ou atletismo.
Quando algo dá errado, o arqueiro costuma culpar fatores externos: vento, equipamento com defeito, distância do alvo.
A técnica é importante, mas o que mais importa é o resultado final (quantos pontos você fez).
No Kyudo (caminho do arco):
O foco principal é o processo interno: controle da respiração, postura perfeita, estado mental calmo e conexão total com o arco.
Se a flecha erra o alvo, o praticante busca a causa dentro de si: "Estava distraído?" "Minha postura falhou?" "Perdi a concentração?"
Existe uma sequência ritualizada chamada hassetsu (8 passos), onde cada movimento é feito com precisão e intenção – como uma meditação em movimento.
Acertar o alvo é consequência, não o objetivo final. O que importa é a jornada de autoconhecimento.
Referências:
Federação Portuguesa de Kyudo. Disponível em: https://fpkyudo.pt/sobre-o-kyudo/
MANUAL DE KYUDO, Volume I: Princípios de Tiro (Shaho). Federação Japonesa de Kyudo (A.N.K.F.). Tradução Portuguesa, realizada a partir do texto em Inglês: Associação Portuguesa de Kyudo (A.P.K.) 2010-2018. Disponível em: http://www.kyudo.pt/Pdf/Manual%20de%20Kyudo%20Traducao%20Protuguesa%202020.pdf
The History of Kyudo. International Kyudo Federation (IKYF). Disponível em: https://www.ikyf.org/history.html
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